Cap 1 - Mudança


“Você tem o pincel, tem suas tintas, pinte o paraíso e depois entre nele”.

Nikos Kazantzakis (1883-1957)

Poeta, filósofo e escritor grego.

 

          Carroças saíam carregadas de móveis da sede da Fazenda São José, uma área de cinqüenta e três alqueires de terra localizada no quilômetro onze da rodovia Campinas-Mogi Mirim. A poeira subia dentre as rodas de ferro que transportavam camas rústicas, cadeiras de madeira maciça, uma comprida mesa escura com quatro gavetas largas, duas de cada lado, e um sofá de couro preto decorado com desenhos em fios de ouro. Assim que alcançavam a rua, os burros seguiam à direita e logo depois viravam em direção a uma placa redonda e amarela de latão cujas letras azuis indicavam o destino final: Casa do Sol, onde, no entardecer, os últimos raios de luz incidiam rasteiros no chão coberto por cascalhos rosados e refletiam a cor na parede branca.

Um estreito caminho de terra seria percorrido até chegar a um imponente portão de ferro emoldurado por dois pilares. Entre eles, o astro-rei cravado no alto do arco central, irradiando volumosos raios. Seu rosto esférico é decorado por olhos cerrados e um indecifrável sorriso presente nos cantos da boca. Entre as grades do portão, as iniciais “HH”, feitas de ferro, indicavam o nome da proprietária: Hilda Hilst.

Aos trinta e seis anos, Hilda era uma escritora com uma agitada vida na capital paulista. Promovia festas em sua casa em Sumaré, freqüentada por artistas e intelectuais, saboreava a comida dos mais requintados restaurantes e se divertia nas mais badaladas casas noturnas. A boemia deixou de ter sentido quando, aos trinta, Hilda recebeu um presente do amigo português Carlos Maria de Araújo que mudaria sua visão de mundo: o livro Lettres au Greco (Cartas a El Greco), autobiografia de Nikos Kazantzakis, poeta, romancista e pensador grego do século XX.

Nikos estava em Paris quando viu uma linda prostituta e combinou com ela de sair. Enquanto se barbeava para o encontro, nasceram pequenas bolhas inflamatórias em seu rosto e ele acabou não indo porque achou que era um milagre. Subiu até o Monte Athos, localizado no prolongamento da Península Calcídica, na Grécia, onde vivem comunidades monásticas. E começou a escrever. Em Cartas a El Greco, Kazantzakis diz que para entender o humano é preciso se isolar da humanidade. Hilda percebeu que era preciso fazer o mesmo para “compreender tudo, desaprender e compreender outra vez”.[1]

Próxima a ela como estava, não via nada por inteiro, nem a si própria, devido às invasões do cotidiano em sociedade.

 

“Aprendi a necessidade decisiva que cada um de nós tem de meditar profundamente, sem mentiras, sem coação, sem censuras. É necessária a distância para se conhecer melhor o próximo, o outro.”[2]

 

Apesar de gostar da vida que levava e das sensações do corpo, Hilda não considerava ter a disciplina e a consciência necessárias para cumprir sua missão de escritora. Queria que as emoções passassem todas ela antes de se dedicar a escrever, “com o afinco desesperado como depois me dediquei.”[3] Deixou crescer os volumosos cabelos loiro-escuros, antes moldados no clássico corte Chanel, tendo a franja ostentada num charmoso topete. Puxou os fios para trás e os domou num rabo de cavalo na altura da nuca, tampando as orelhas. Não vestiria mais os modelos da marca Denner para se cobrir de batas indianas. Sua transformação não era repentina como poderia parecer, mas a decisão de que não poderia perder mais tempo foi imediata.

 

 “Houve até quem me tachasse de esnobe, de sacerdotisa, de monja, de bruxa, tudo isso só porque eu quero pensar no que é real e urgente.” [4]

 

Sua mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, emigrante portuguesa que morava na sede da Fazenda São José, não compreendia a atitude da filha, que lhe pediu três alqueires para construir sua casa e se dedicar à literatura.

 

– Vai ficar no mato?

– Vou escrever, mãe. Senão, não vai dar tempo.

 

Hilda precisava de tempo para escrever trinta e quatro livros a mais do que os sete que ela já havia publicado e, com eles, receber oito prêmios literários além do único, o Pen de Poesia, que suas obras haviam conquistado até aquele momento. Foi incentivada pela escritora modernista Cecília Meirelles que, após ler um poema escrito por Hilda aos dezoito anos, declarou: “Quem escreveu isso precisa dizer mais”. O poema dizia: “Somos iguais à morte, ignorados, puros e bem depois o cansaço brotando nas asas seremos pássaros brancos à procura de Deus”.

Aos 20 anos Hilda publicou o primeiro livro de poesia, Presságio. Sua mãe se preocupou com o fato, dizendo que ela “ia ficar com a coisa do pai”a loucura. Apolônio de Almeida Prado Hilst era um intelectual de Jaú, interior de São Paulo, que, apesar de fazendeiro, foi um dos primeiros a defender a idéia de cooperativismo no Brasil. Ligado ao movimento modernista, escrevia poesias com o pseudônimo Luiz Bruma e “se fazia perguntas perigosas”. Apolônio se perguntava: “Como será a alma na loucura?” Ele “deve ter tido a resposta”[5]: ficou esquizofrênico aos 33 anos. “Olha os corvos, os corvos estão chegando eles estão cheios de sangue”, – dizia. Hilda sentia medo de ficar como o pai. Ela escrevia para não enlouquecer, para ordenar a desordem da loucura, o contrário do que sua mãe temia. “As mães não querem mais filhos poetas”.

 

“Tenho preguiça pelos filhos que vão nascer

teremos que explicar tantas coisas a tantos deles

as mães não querem mais filhos poetas

deram o grito desesperado das mães do mundo”[6]

 

 

Dia 24 de junho de 1966, Hilda se mudava com o namorado, Dante Casarini, para a Casa do Sol.  Passando pelo portão, a carroça seguiu por um terreno seco, coberto de mato ralo e baixo em trechos esparsos. Cinco coqueiros de troncos finos e folhas queimadas esvoaçavam no sentido do vento. Uma figueira com mais de vinte metros de altura chamava a atenção para o lado direito. Como se fosse a mão da árvore a embalar o corpo, está preso em um de seus galhos, por correntes compridas, um balanço sem encosto que acomodou alguns brincalhões em seu rígido assento. Para frente, para trás, para frente, para trás. O ar sopra suave no ouvido, devido ao movimento. Os cabelos vão e vêm, os joelhos se dobram e se esticam. A Casa está à esquerda. Dá para ver uma chaminé no telhado. Ela parece mais próxima, mais distante, mais próxima. E some, caso se feche os olhos para perceber apenas a claridade vermelha do sol que se espalha entre os raros espaços da densa sombra da árvore. Vermelho, preto, vermelho, preto. Se tirar os pés do chão e agarrar as mãos nas correntes laterais, conseguirá deixar de pensar. E irá apenas sentir.

A árvore centenária de copa larga e densa exibia suas raízes grossas fincadas ao solo e dava boas vindas aos primeiros moradores daquele lugar que, finalmente, chegaram a uma casa branca de janelas altas. Seis pilares sustentam a cobertura da varanda, decorada por dois bancos longos de madeira. Logo na entrada, um lustre de vidro liso azul-marinho pende em uma corrente na cúpula que antecede a porta. Seu bico dourado aponta para as cabeças que por ali passam. A maçaneta fria e redonda gira e a porta em forma de arco é empurrada para trás. À frente, outra porta leva a um pátio interno. Aos lados, um só ambiente comprido e horizontal compreende as salas de estar, de jantar e o escritório, separado dos outros cômodos por uma lareira central. O piso é de lajotas e o teto alto, forrado por tábuas verticais que aumentam a sensação de profundidade do corredor da ala esquerda da Casa: ao lado do escritório, banheiro e quarto de Hilda. Do outro lado, na ala direita, a cozinha e, ao fundo, outros quartos.

           O prédio lembra um mosteiro espanhol: todas as portas são altas e em formato de arcos e os cômodos convergem para o pátio interno, o que remete à idéia do isolamento procurada por Kazantzakis ao subir no Monte Athos. Assim como fazem os monges, Hilda buscava um encontro. Com Deus, com o amor, consigo. A solidão era necessária para “viver muito mais para as coisas de dentro do que para as coisas de fora”.[7] Dentro da casa, os objetos eram nus e solitários: o chão sem o tapete, a mesa sem a toalha, as janelas sem as cortinas. Tudo ficava exposto aos copos, aos pratos, à poeira, ao toque das mãos e dos pés. Tudo deveria ser percebido por inteiro.

Apesar de as janelas serem altas, a luz do sol entrava tímida nos espaços que se abriam pelas vidraças até seu último feixe deixasse de apontar e a Casa do Sol ficasse no breu. A energia elétrica vinda de Jaguariúna chegava fraca, por isso Dante comprou trinta lampiões e encomendou uma lata com torneira para guardar o querosene. Todos os dias, às cinco e meia da tarde, enchia-os, espalhava-os pela casa e fincava alguns numa roda larga de carroça pendurada no teto da sala, servindo de lustre. A água do chuveiro era aquecida por meio de um botijão de gás que ficava do lado de fora. Para outras utilidades, era puxada de um poço com balde. Os champanhes franceses que saíam das caixas eram mantidos refrigerados em uma bacia recheada de generosas barras de gelo. Não havia televisão nem rádio. Quando anoitecia, a meia-luz dos lampiões trazia um ar romântico, mas dificultoso, para Hilda fazer aquilo de que mais gostava: ler e escrever.

Numa noite de 1966, a casa foi espantosamente iluminada. Hilda e o namorado estavam na sala quando ela colocou um lampião ao seu lado para que pudesse enxergar, ainda que com dificuldade, o conteúdo do livro que tinha em mãos enquanto goles de uísque desciam pela garganta de Dante. Hilda estava submersa quando, de repente, as palavras ficaram completamente nítidas. Todos objetos foram iluminados por uma imensa claridade refletida nas paredes. Uma luz esbranquiçada vinha do jardim e invadia a sala. Os dois acreditaram que era impossível ser o farol de um carro, devido à potência da luminosidade, semelhante à transmitida por holofotes cinematográficos. Não se escutava o barulho de motores, nem o mínimo ruído. Correram juntos para a comprida e nua janela do canto esquerdo da sala. O silêncio era ensurdecedor. Do outro lado do vidro, uma esfera brilhava a poucos metros de distância. Os rostos do casal, antes claros, se camuflaram gradativamente à medida que o foco de luz se retraía até desaparecer por completo, sem deixar vestígio na escuridão.

Este foi o primeiro de diversos fatos misteriosos que viriam a acontecer na Casa do Sol. Depois de passado o susto, os acontecimentos inusitados traziam alegria para Hilda. Estava sempre envolvida por um bom humor incrível que surpreendia o namorado Dante. Ela acordava sorrindo.

Quando a conheceu, Dante era funcionário federal do Ministério da Fazenda no Rio de Janeiro, onde havia morado por dez anos. Estava de férias em São Paulo, em 1963, comprando sapatos em uma loja da rua Augusta, quando uma mulher de cabelos loiro-escuros, com uma charmosa mecha mais clara caindo-lhe sobre a testa, olhava a vitrine. A raiz da franja se encontrava ao meio da testa em um fino bico, formando um coração. As sobrancelhas curvadas nas extremidades levantavam as pálpebras ligeiramente caídas. O olhar, como a maioria dos seus outros gestos, era suave e demorado. Os olhos verdes acompanhavam as cenas em movimentos lentos e paradas intensas. As maçãs do rosto se erguiam com graciosidade enquanto seus lábios carnudos se esticavam de felicidade. Havia algo de sarcástico naquele sorriso. Algo de ironia e de demasiada segurança. Era a liberdade que resplandecia em todos os seus poros. Ela não estava interessada em comprar. Aproximou-se de Dante e declarou com delicadeza:

 

– Você é o homem mais lindo que eu já vi.

 

 Hilda havia namorado os galãs de Hollywood como Jeff Chandler, Tony Curtis e o cantor e ator Dean Martin, homem de pele morena e sorriso debochado que conheceu durante a viagem de seis meses pela Europa em 1957. Embarcou para Paris usando um vestido preto, broches florais e colar e brincos de pérolas. A ponta arredondada de seu queixo dava-lhe um ar sensual e seu olhar possuía um misto de desejo e nostalgia. As maçãs do rosto, salientes, demonstravam o vigor do seu sorriso. Os lábios se preenchiam de luz e mostravam-se todos os seus dentes vibrantes, sorriso pelo qual Dean se apaixonou. Apesar de ele cantar num ritmo extremamente suave em seu ouvido You make me feel so young durante os vinte dias de namoro, ela não gostava dos holofotes que os cercavam em todos os lugares. Achava-o simpático, mas bebia muito, até mesmo antes de subir nos palcos. Irônico, Dean cantava a música pela metade e dizia para o público: “Se vocês querem a música direitinho, vão comprar o disco”. Ele havia desfeito a dupla com o comediante Jerry Lewis, com quem participou de musicais cômicos naquela década, e tinha dificuldades em continuar sua carreira junto aos estúdios, que o viam como um estepe de Lewis.

 Dean Martin estava em Paris para participar do filme Os deuses vencidos, de cujo elenco Marlon Brando fazia parte no papel de oficial nazista. Brando era o símbolo do homem viril americano. As fãs viam nele o motociclista rebelde que representou em O Selvagem (1954). Dean acreditava que contracenar com ele era uma grande oportunidade de fazer sua carreira decolar novamente.[8] E para Hilda, o fato dos dois contracenarem era uma oportunidade de conhecer o astro e, quem sabe, viver um romance. Poderia ver o azul-turquesa de seus olhos, imperceptível na coloração branca e preta dos filmes. Dean se negou a apresentá-lo, dizendo que naturalmente o iria trocar por Brando, mas deixou escapar o lugar onde estava hospedado: Hotel Rafael.

Hilda foi até o bar Cavalados esperar pela hora da tentativa de falar com ele. Havia recebido a informação de que deveria procurá-lo à noite. Como ainda era final de tarde, o bar não havia começado a funcionar. Os garçons colocaram uma mesinha na calçada e ela pediu um uísque. Logo depois chegou um homem de estranhas feições e ares mal-humorados. Sentou-se na mesa ao lado e pediu a mesma bebida. Olhou-a com insistência por vinte incomodantes minutos. Era um olhar desagradável, estava a aborrecendo. Num gesto inesperado, o desconhecido galanteador espatifou o copo de uísque na mesa, no momento em que o amigo de Hilda, Body Costa, se aproximava. Os garçons correram para lá. Body sentou-se vagarosamente ao seu lado dizendo:

– Hilda, você não sabe quem é esse homem. Ele está olhando para você há muito tempo?

– Vinte minutos

– É o homem mais rico do mundo, o Howard Hughes. Como é que você não deu bola?

– Mas eu não sabia que era ele! Chame-o aqui na mesa!

– Não posso, de jeito nenhum.

Howard foi embora em um imenso Rolls-Royce. Restava à ela nada mais que Marlon Brando. Decidida, saiu à procura do ator, acompanhada da amiga Marina De Vicenzi. Era perto de onze horas da noite quando entrou no Hotel Rafael e subornou o concierge, que não queria deixá-las seguir em frente. Com o dinheiro nas mãos, o funcionário pediu para que um garoto as levasse até o desejado quarto. Hilda bateu à porta. Quando ela se abriu, do outro lado estava o ator francês Christian Marquand.

– Será que eu poderia falar com o monsieur Brando?

Brando se aproximou usando um robe de seda escura cor de vinho, contrastando com seus cabelos loiros claros oxigenados e uma echarpe envolvida no pescoço. Hilda pensou: “Meu Deus, e agora, o que vou falar para ele? Eu tenho de falar alguma coisa, quero entrar e ver se posso dormir com ele”. Brando olhou-a e perguntou em inglês:

– O que é? Você pensa que só porque é uma mulher bonita pode acordar um homem a esta hora?

– Desculpe-me, sou uma jornalista brasileira.

– Não dou a mínima para o seu jornal.

Era evidente que Hilda não era uma jornalista a trabalho. Estava vestida com roupa da grife Cristian Dior e uma tiara de brilhante escorria-lhe na testa. Marina fazia sinais para Brando, indicando que a amiga era louca. Ele riu e finalmente concordou:

– Bem, pode falar.

– O que o senhor acha de Franz Kafka? Quer me dar umas declarações?

– Vou dormir agora, não vou pensar no sr. Kafka.

Hilda ficou desesperada e insistiu sem resultado:

– Não posso entrar nem um pouquinho para conversar?

– Não.

“Não”. Hilda também havia escutado muitos sins: do poeta Vinícius de Moraes, de quem foi namorada, do escritor Carlos Drummond de Andrade, que a cortejou com um poema esperançoso:

 

“Abro a folha da manhã

Por entre espécies grã-finas

Emerge de musselinas

Hilda, estrela Aldebarã.

 

Tanto vestido enfeitado

Cobre e recobre de vez

Sua preclara nudez

Me sinto mui perturbado.

 

Hilda girando boates

Hilda fazendo chacrinha

Hilda dos outros, não minha

Coração que tanto bates.

 

Mas chega o Natal

e chama a ordem Hilda.

Não vez que nesses teus giroflês

Esqueces quem tanto te ama?

 

Então Hilda, que é sab(ilda)

Manda sua arma secreta:

um beijo em morse ao poeta.

Mas não me tapeias, Hilda.

 

Esclareçamos o assunto.

Nada de beijo postal

No Distrito Federal

o beijo é na boca e junto”.

 O homem que estava à sua frente na loja de sapatos da Rua Augusta, em São Paulo não precisaria lhe recitar poemas, ser o homem mais rico do mundo ou um astro do cinema desejado por todas as mulheres. Para ela, era o melhor. Alto, moreno, rosto anguloso, olhar preciso. Hilda cheirava ao perfume L’expression de Jacques Fath. Dante não perdeu a oportunidade de dar seu telefone. Mais tarde, ela ligou em sua casa perguntando o endereço. Mandou o motorista buscá-lo na mesma noite. Sempre fazia de tudo para ter as pessoas e as coisas que queria por perto.

“Posso dizer que já tive todas as emoções que desejei ter. Se eu me apaixonava por uma idéia ou por uma pessoa, fazia com que essas coisas ficassem perto de mim de qualquer forma. Eu não abdicava nunca do que desejava e queria.”[9]

Quando Dante chegou, encontrou um banquete feito para ele. O rosto e corpo de Hilda eram iluminados por velas. Dante ficou surpreso. Não sabia que sua vida ia mudar a partir daquele momento.

Os dois saíam todas as noites, estavam apaixonados. Dante era admirador de touradas espanholas e tinha um olhar firme. Hilda gostava de homens fortes e possuidores de certa frieza. Citava Simone de Beauvoir, dizendo que o homem deveria ser, de alguma forma, superior à mulher, e divertia-se quando observava que “homem que gosta de mulher por cima é afrescalhado”. Namorou João Ricardo Penteado, homem dez anos mais novo que, além de ser jornalista, também lutava boxe. João Ricardo foi o homem que Hilda mais amou. Viria a visitá-la novamente quando ela estava com sessenta anos. Percebeu, na ocasião, que ele estava nervoso e ofereceu-lhe uma bebida. Ele tremia muito e ela continuava achando-o lindo. A escritora lembrava-se do quanto era excitante ir para perto do ringue ver o suor escorrer pelo corpo forte e moreno enquanto treinava golpes precisos e intensos. Às vezes, a violência ultrapassava a arena, como ocorreu com outro namorado seu, que deu um tiro na porta de vidro do Edifício Bocaína quando ela morava no Jardim Paulista, em São Paulo. Os moradores do prédio escutaram quando o homem gritou alguma coisa, disparou a arma e foi embora deixando o chão cheio de cacos. Hilda ganhava mais do que estilhaços de vidro. Enlouquecidos, os homens a presenteavam com jóias, casacos de pele, Mercedes-Benz e se desfaziam de seus planos para viver com ela.

No trabalho, Dante pediu transferência para São Paulo e passou a morar com Hilda em uma casa decorada com peças antigas, onde hoje fica o viaduto Sumaré. Recebiam a visita de artistas e intelectuais como Raul Cortez, Eva Wilma, Lupe Cotrim, Olga Savary, Mira Schaendel, Teresa Austragésilo, Jô Soares, Cassiano Gabus Mendes, Rofran Fernandes. Iam a restaurantes, boates, promoviam festas regadas a champanhe francês. Dante sentia como se estivesse nas badalações parisienses, pelo requinte e agitação.

Agora estava em uma fazenda, ouvindo os grilos cantarem ao anoitecer. Havia pedido demissão do emprego para se isolar com ela. Considerava aquela decisão uma aventura apaixonante. Ele usava calças jeans, camisão aberto e uma larga corrente preta com crucifixo dourado pendente próximo ao umbigo. Estava completamente envolvido e disponível a Hilda, fascinado por sua intelectualidade. Não dizia coisas desnecessárias, as conversas eram norteadas pela inteligência. Seu bom humor também era apaixonante. O largo sorriso que ela abria todos os dias ao despertar ficaria gravado na memória de Dante para sempre, fazendo-o sentir a intensidade vida. Assim, ele pôde compreender o escritor irlandês Oscar Wilde: “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”.

Dante acordava antes do amanhecer e deixava bilhetes na mesa da cozinha para Hilda avisando se ia ao centro, ao banco ou cuidar da fazenda. Enquanto fazia as atividades práticas, ela escrevia. Pela falta de algo criativo a fazer, ele decidiu se aventurar entre madeiras de cedro, iniciando o trabalho de escultura em traços versáteis e rudimentares. O tronco era trazido por burros a ele acorrentados. Posicionava-o atravessado entre duas compridas bancadas dentro da antiga cocheira de cavalos. Era um espaço rústico, fechado por porteiras baixas em que os animais costumavam ficar com os alongados pescoços por cima.

Os temas religiosos eram os mais recorrentes. A maioria dos personagens talhados por Dante possuía posturas santificadas, como a que decora o lado esquerdo do pátio interno da Casa do Sol: uma figura masculina de mais de dois metros de altura, em cuja face foram esculpidos um nariz fino e comprido e cabelos na altura do queixo. O homem mantém as mãos cruzadas no peito, enquanto os olhos são voltados para os pés, onde uma segunda figura está ajoelhada, com a mão esquerda apoiada em suas longas pernas num gesto de paixão e súplica.

Nem todas as esculturas da Casa foram produzidas por Dante, como os dois sisudos monges carmelitas de cabelos cortados em forma de cuia e orelhas altas. Um em cada lado do batente da porta de entrada, recepcionavam os primeiros visitantes, pertencentes à alta sociedade paulistana, que chegavam em carros importados ou desembarcavam na Estação Paulista de trem, onde sempre havia alguém a esperá-los para conduzi-los à Casa do Sol. Enviavam cartas para combinar o dia da visita para a caixa postal do correio central de Campinas.

Os amigos paulistanos não acreditavam que Hilda agüentaria ficar longe das badaladas festas por muito tempo. No início pensavam que ela estava “dando uma de fazendeira”. Logo perceberam estar enganados e a amizade começou a perder o interesse: Hilda queria ler, ler, ler, escrever, escrever, escrever. Não ia mais a São Paulo e parou de se arrumar. Acordava de manhã, prendia o cabelo para trás e colocava uma roupa larga. Suspendeu as encomendas de champanhe, mas ainda receberia a visita de um fantasma.

Hilda estava sentada na sala quando viu um homem de terno branco, do tamanho da porta, entrar: tinha por volta de 1,90 m de altura. Ela se levantou para recepcioná-lo. O visitante disse rindo: “Enfim, cheguei”. Ele carregava uma valise preta na mão e vestia um chapéu gelot, moda nos anos 40. Parecia um embaixador. Quis se aproximar para cumprimentá-lo, mas o homem desapareceu. Esse não seria o único contato que considerou ter com o mundo espiritual.

 

Dia 24 de Setembro de 1966, dez horas da manhã.

Dante e Hilda iam para o centro de Campinas em um Mercedez-Benz cinza-grafite. Ela estava muito triste porque seu pai não estava bem de saúde, internado no hospital psiquiátrico Bierrenbach de Castro. De repente, uma imensa alegria lhe invadiu o peito, sem motivo aparente. Olhou para uma colina ao lado da estrada e viu Apolônio Hilst em pé, parado, com um chapéu e vestido de branco.

– Dante, imagine que loucura, acabei de ver o meu pai na estrada.

Imediatamente, Hilda sentou necessidade de... açúcar. Quando chegaram ao centro da cidade, Dante comprou muitos doces, que ela degustou com prazer.

Dia 24 de Setembro de 1966, às dez horas da manhã, Apolônio estava morrendo.

A primeira vez que o viu, a filha tinha três anos e morava com sua mãe em Santos, na Rua Vicente de Carvalho, número 32. Hildinha tinha os cabelos loiros muito claros, cortados em forma de cuia, o que fazia ressaltar seu rosto cheio e a bochecha saliente. O pai chegou e lhe deu um cavalinho de pau. Ela ficou olhando o tempo todo para cima, era um homem era muito alto.[10] Voltou a encontrá-lo aos 16 anos, quando ele pediu para lhe chamar. Disse ao irmão Luiz Antonio Hilst, com quem morava na fazenda da família em Jaú, que queria conhecer a filha. Quando Hilda chegou no portão, lhe pediu a carteira de identidade. Ela tirou o documento da bolsa e entregou ao pai. Ele deixou-a entrar.

– Alguém foi recebê-la na entrada? – questionou Apolônio aos seus familiares assim que Hilda entrou na casa.

– Você foi receber. – respondeu seu irmão Luiz Antonio.

Apolônio ficou nervoso com as irmãs, por não terem recepcionado sua filha. Hilda ficou ruborizada de vergonha. Com ela, Apolônio não tinha ataques de nervosismo. Mandava que lhe servissem café nos três dias que passou na fazenda. Para Apolônio, aquela não era a Hildinha, apesar da carteira de identidade. Era Bedecilda, sua mulher, quem estava ali. Às vezes pegava suas longínquas e delicadas mãos para pedir por três noites de amor.

– Só três noites de amor, só três noites de amor – insistia.

Ela ficava muito atrapalhada, sem jeito, morta de vergonha.[11]

 

Antes de Apolônio ser internado no hospital psiquiátrico, Hilda tinha notícias dele apenas pelas cartas que seu tio Luiz lhe enviava. Ficou sabendo que Apolônio deixou crescer uma grande barba, que não lhe caía mal. Vestia-se com cuidado e com gosto. Em casa, ficava de pijama e chinelos e passava a maior parte do dia deitado. Às vezes saía pela cidade, como no dia em que foi a um longo comício político de um brigadeiro. Não admitia que ninguém o acompanhasse, o vigiasse. Um empregado da família o seguia de longe, sem que percebesse. Assistiu a todo o comício vigiando Apolônio, que se portou perfeitamente bem.

Quando estava em casa, tinha fortes ataques de cólera, quase todos os dias, sempre de madrugada ou pela manhã, ao acordar. Nesses momentos, se lembrava de acontecimentos do passado. Gritava, xingava. Seus familiares já estavam acostumados àquela rotina. Moravam um pouco afastados, por isso não tinham inconvenientes com os vizinhos. Inconveniente era a visita de Hilda. Seu tio insistia, nas cartas que lhe enviava, para que não fosse ver o pai.

Apolônio queria que Hilda deixasse os estudos, saísse de São Paulo, se casasse.  Por isso, era melhor continuar se correspondendo apenas por cartas, pois era muito “mandão”.[12] Ele escrevia para a filha, mas as cartas voltavam sem parar: colocava endereços imaginários ou vagos. Queria ver Hildinha, se preocupava com ela. “Onde ela está? Porque ela não vem?” Escreveu para seu antigo advogado, Dr. José Augusto, para que a trouxesse de volta. Mas ele não trouxe. Mostravam-lhe as fotos dela nos jornais, mas não, essa não era a sua filha, ele não queria olhar, não queria comentar. Acreditava que era tudo forjado com o intuito de convencê-lo de uma falsa realidade.[13]

Hilda não tinha coragem para visitá-lo enquanto esteve internado no sanatório Bierrenbach de Castro, em Campinas. Pedia a Dante que fosse em seu lugar. Apolônio falava pouco. Apesar das frases desconexas, dizia com exatidão:

A minha filha é uma pessoa muito fantasiosa.

A última vez que Hilda acreditou ter entrado em contato com o pai foi quando ele já havia falecido. Ela lia um artigo em um jornal sobre Franz Kafka, um dos seus escritores preferidos. Quando pôs a mão em cima do texto, seu corpo se enrijeceu. “Será que tem alguém querendo falar comigo?” – pensou. Fechou os olhos para olhar para dentro e leu na escuridão: “Loucura”.

– É você, meu pai? – perguntou para o silêncio – O que está acontecendo agora?

Hilda escutou uma resposta.

– Vida na Terra, experiência inútil e dolorosa.

– Pai, será que algum dia eu vou conseguir ser alguém na literatura, ser entendida por alguém?

– Matéria. Muito mais matéria.

– E a alma, continua louca, pai?

– Hipótese absurda.[14]

Com dor e fantasia, Hilda prestou-lhe uma homenagem.  Escreveu Odes maiores ao pai e mandou cravar o último verso na lápide de seu túmulo:

“E ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece”.

 

 

 

 

 



[1] CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Hilda Hilst. São Paulo: Instituto Moreira Sales n.8, out 1999, p.31.
[2] Id., Ibid.
[3] WERNECK, Humberto. Hilda se despede da seriedade. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17 fev 1990
[4] RIBEIRO, Léo Gilson. As múltiplas seduções de Hilda Hilst. Jornal da Tarde. São Paulo, 18 abr 1977
[5] VASCONCELOS, Ana Lúcia. Hilda Hilst: a poesia arrumada ao caos.  Folha de S. Paulo. São Paulo, 19 jul 1977, Folha Ilustrada.
[6] Id., Ibid.
[7] GRANDO, Cristiane. Hilda Hilst abandona a vida dissonante para compreender a música da morte. Revista Garatuja, mar 2004, p.6
 
[8] DVD Show. Website.Disponível em: http://www.dvdshow.com.br/padrao.php?page=atores_&listar= 618&od=1 Acesso em:23 set 2005
[9] MASCARO, Sônia Amorim. Hilda Hilst. Jornal da Tarde. São Paulo, 21 jun 1986
[10] CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, out 1999, p26.
[11] Id. Ibid. p26.
 
 
[14] CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, out 1999,. p.40.